Escrever?

"Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga" (Gilles Deleuze)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Acuado


Estaria cansado? Sim,claro. Um estado de lassidão. Imensidão de nada. Caminhar no deserto? Sem água? Quase. Quase o deserto. Talvez a multidão. A desértica multidão. Todos e nada.
Qual a estratégia? Haveria alguma? Estavam acostumados a todas as estratégias, agiam como inimigos. Não que houvesse algo para isso. Mas como um tipo, uma personagem, uma posição. A linha que diferenciava.
Tinha certa pena? Sim, claro. Eram jovens, imaturos, fortes e audazes. Mas imaturos. Quase infantis. Sinceridade que escorria da boca. Alegria que se mesclava perigosamente com indelicadeza. Juventude. Agressividade.
E ele. Velho? Sim. Pare eles. Para eles era um velho. O jovem parece desqualificar tudo que não vibra na sua sintonia, no seu gosto.
E ele? Estava cansado.O discurso as vezes se erguia em busca de recepção. Mas já era só retórica. Rebatido pelo desdém, indiferença, impenetrabilidade.
Ouvir? O ouvir era uma coisa impositiva. Ordem, ameaça. E sofria. Pois na ação empenhada, contrariava sua própria forma de pensar. Mas estavam todos dentro  da estética do rebanho. Da ordenação. A sociedade gostava disso. Alguém ordenando, decidindo, dizendo e definindo. Os outros seguindo. Através de mecanismos disciplinares e corretivos.
Quando acabou. Recolheu o material. O trabalho, o resultado. Eles correram para a rua. Alegres, como se estivessem presos, encarcerados. Como se ele, o velho, fosse o carcereiro de suas liberdades. Era?
O café na mesa. O estofado. A perna cruzada. A conversa dos colegas. A mesma. Sempre a mesma. No mural mais afazeres. Reuniões, trabalhos, notas, documentos e mais...
Na bolsa um livro pulsava. Gostaria de abrir. Ler. Ler ainda era um caminho. Sabia. Pelo menos para ele. Nirvana. Religião.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014


" A feiura é fundamental, ao menos para o entendimento desta história. É feia, está que vos fala. Muito feia. Feia contida ou feia furiosa, feia envergonhada ou feia assumida, feia modesta ou feia orgulhosa, feia triste ou feia alegre, feia frustrada ou feia satisfeita - feia, sempre feia."

(A mulher que escreveu a Bíblia - Moacyr Scliar, 2003, p. 19)

NA CARNE






     E não era ninguém quando morri. Apenas o espaço vazio da porta e a dor na barriga. E já os olhos me iam com imagens de indefinição.
     Um rosto estranho. Pálido. E um estampido a me arder a carne. Segundos. E só eram os pés dele que via.
     Sapatos de brilho singular. Minha cara de espanto, distorcida no verniz dos pés dele. Meu olho que se alarmava à proximidade do cano que descia até minha testa. E então o nada.
     Mas por segundos...
    
     Ele não sabe. Nem imagina. Mas estou nele. No seu passo firme e convencido. Agarrado em sua carne. Mesmo que quisesse não conseguiria.
     Ele é saboroso em sua maldade incondicional. Alimento pra minha fome etérea e eterna.
     Exala confiança enquanto pelas brechas e poros da sua carne, invado sua sanidade.
     Acha que não sente nada. Pensa que me esquecerá em segundos. Mas meus dentes devoram seu cérebro e suas memórias.
     Acredita que no bar, encoberto pela fumaça e álcool  se livrará do meu corpo a mastigar-lhe.
     Belo em sua boca o álcool que escorre. Etílico elemento. Vejo seu coração. Pulsando... pulsando.
     Um carro estaciona e somos levados. O homem gordo cara fechada pergunta “deu tudo certo?” “Sim.” É a resposta. Então um envelope é trocado de mão. Dinheiro que recende a sexo e drogas. Os bolsos estão cheios. O carro nos larga e a algumas quadras meu assassino entra no ônibus e senta para morrer.
     Não há inferno nem demônio. Há apenas a fome. Todos têm fome. Tudo tem fome.
     A humanidade é um termo... conceito muito limitado. Dirão que não sou humano. Que sou um demônio. Não sei. Sei apenas que este coração tem o gosto de toda minha fome. Todo o meu desejo.
     Provavelmente ele sentirá dor. Abrirá a boca em grito mudo, mãos no peito. Falta de ar... O corpo debatendo-se no chão.

     Na minha boca, escorrendo, o suco amargo e delicioso de todas as mortes.